sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Em Paz



'How 'bout how good it feels to finally forgive you'.

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Dois anos haviam se passado. Nem de longe parecia tanto... para ele a ferida era recente, sentia ainda o sangue escorrendo. Lembrava nitidamente do dia em que recebera a fatídica notícia. Nunca esperaria, pelo menos não deles. Dela talvez, mas dele? Um baque duro, do qual ele tinha se recuperado (será mesmo?) a duras penas.

O amigo ainda ligava, religiosamente, todo domingo, convidando para um café ou uma cerveja, o que ele quisesse. Nunca aceitava. Em verdade, também não negava, apenas dizia que combinariam. Nunca deu o braço a torcer de ligar. Só de lembrar quantas vezes o amigo pedira para que o entendesse e o perdoasse. Teimosamente, como era sua característica, insistira na dureza de espírito.

Dessa maneira, se afastou de todos. Raramente saía agora. Saía para comer algo, alugar seus filmes velhos e no máximo dar uma caminhada no parque. Concentrava-se mais do que nunca no trabalho que agora o absorvia de uma maneira impensável para alguém que o vira dois anos antes.

Fumava mais, bebia menos. A bebida por sair menos, talvez. Mesmo que de vez em quando abrisse um vinhozinho para ver algum Hitchcock menor. Morar longe da família tem suas vantagens, principalmente na hora de esconder algo. Facílimo se o desejar.

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Havia terminado os cálculos para aquela estrutura que seu chefe estava cobrando desde segunda. Estaria tranqüilo por alguns dias no serviço agora. Permitiu-se um sorrisinho de satisfação ao pensar que talvez pudesse ligar pra alguém da velha turma, tomar uma cervejinha. Um prazer mundano, mudando um pouco sua solitária rotina.

De bom humor, juntou as coisas, limpou a mesa para o fim de semana. Pegou o carro, saiu.

Ligou o rádio, Beatles ao fundo. Uma sensação leve o dominava. Abriu os vidros, vento no cabelo, praticamente uma música de Roberto Carlos.

Porém, nunca é tão simples, pelo menos não para ele. A alguns quarteirões de sua casa viu os dois andando despreocupadamente na rua, rindo de alguma coisa provavelmente sem importância. O típico casal apaixonado. Aquilo o abalou profundamente, quando se está 'desarmado' o golpe tende a ser mais forte.

Esteve muito tempo de guarda levantada e justamente no dia em que havia se dado uma chance de relaxar, via aquilo. Doía mais pelo fato de ter ouvido rumores dos dois não estarem mais juntos. Um prazer culpado apoderara-se dele quando ouviu o tal rumor, obviamente errôneo.

Estacionou o carro, inseguro do que fazer. Ir para casa e continuar com sua rotina? Ignorar o acontecimento e seguir com o plano de fazer algo diferente? Claro, optou por nenhum. Saiu do carro, rumou para onde estava o casal.

Surpresos com a presença os dois fizeram menção de conversar, saudaram-no. Ignorou-os, e de maneira simbólica (claro, inútil) passou entre os dois, 'quebrando' o elo feito pelas mãos entrelaçadas.

Rumou ao primeiro bar que encontrou. Pediu o amigo das horas difíceis, Johnnie e assistiu o líquido bronze fluir até o copo com gelo.

Um cigarro. Dois. Amaldiçoava-se por ter se dado ao luxo de ficar desarmado. Achava, como todos que sofrem, que sua dor era maior que a que qualquer um já havia sentido. Uma grande bobagem se me permitem opinar. A natureza da dor é ser ímpar, cada um sofrendo à sua maneira, não há termo de comparação.

Terminou o copo. Olhou para a rua, a chuva acabara de começar.

- Pior que estou, não dá. - pensou. Pagou, saiu para a rua.

Andou alguns metros debaixo da água que não cessava de cair. Pensando em como havia chegado até ali.

Parou em frente a uma loja de eletrodomésticos, uma música tocava. Ouviu um trecho.

'How 'bout how good it feels to finally forgive you'. Aquilo caiu como uma granada.

Pensou em quanto tempo guardava aquelas coisas ruins dentro de si, o amargo, a raiva, a frustração. Talvez tenham errado com ele, como se ele não houvesse errado também inúmeras vezes. Pessoas tão especiais que significavam tudo para ele, trancou-as para fora de si.

Lembrou de quantas chances teve de finalmente limpar o fel, todas insucessos.

E chorou. Finalmente chorou, dois anos depois daquela última lágrima ter escorrido por seu rosto. A água da chuva misturada com o sal das lágrimas, purificando-o, limpando-o de tudo o que estava guardado, bem lá dentro, toda a raiva, ódio, tristeza, frustração.

Pegou o celular, apertando as teclas bem devagar como se escrevesse um condoída confissão. Esperou ser atendido.

- Alô.

- Oi, cara. Tudo bem?

- Tudo beleza, Fino. E você?

- Certinho. Só você me chama de Fino. Sabe que odeio.

- Por isso que o chamo assim, panaca. Aceito aquele café agora. Tá de pé ainda?

- Sempre. Eu passo aí ou você passa aqui?

- Passo aí, até já.

- Ok.

Desligaram.

Rumou para a casa que não visitava há dois anos. De corpo e principalmente alma lavados.

Enfim, livre.

3 comentários:

Anônimo disse...

'A natureza da dor é ser ímpar, cada um sofrendo à sua maneira, não há termo de comparação.'

Acredito, ainda, que temos diversas dores que analisadas separadamente talvez seja possível mensurá-las, e determiná-las em magnitude... mas isso não importa, uma, não necessariamente a primeira nessa escala, vai doer mais doídamente doído!

Jerçu!

Flávia Higashi disse...

Triste.
Só pra vc não dizer que eu não comento aqui. hehehe....
E não esqueça de mudar a foto!

Beijos Chandler.

Anônimo disse...

Não concordo, Gerson. Aliás, esse era o comentário que queria fazer no "Sem Lápis Nem Papel".. que farei oportunamente.
Borelli, o comentário, aqui, é pra exaltar a bela construção dessa frase destacada pelo Gerson. Parabéns, querido!!!
Beijo grande. Tati.